A causa principal

por que na Lei da Escritura

eram lícitas as perguntas que se faziam a Deus,

e convinha que os profetas e sacerdotes

quisessem visões e revelações de Deus,

é porque ainda

não estava bem fundada a fé

nem estabelecida a Lei Evangélica,

e assim era mister que perguntassem a Deus

e que Ele falasse,

quer por palavras,

quer por visões e revelações,

quer em figuras e semelhanças,

quer por outras muitas maneiras

de significações,

porque tudo o que respondia,

falava, fazia e revelava,

eram mistérios da nossa fé

e coisas tocantes ou endereçadas a ela;

porquanto, as coisas da fé

não são do homem,

mas da boca de Deus…

por isso era mister que perguntassem

à mesma boca de Deus;

e por isso os repreendia o próprio Deus,

por não consultarem a sua boca

em suas coisas

a fim d’Ele responder

e encaminhar seus casos e coisas à fé,

que eles ainda não sabiam,

por não estar ainda fundada.

Mas já que está fundada a fé em Cristo

e manifestada a Lei evangélica

nesta era de graça,

não há para que perguntar-lhe

daquela maneira,

nem para que ele fale já

nem responda como então.

Porque em dar-nos, como nos deu o seu Filho,

que é uma Palavra sua,

que não tem outra,

tudo nos falou junto e de uma vez

nesta única Palavra,

e não tem mais que falar.

É este o sentido daquela autoridade

com que começa S. Paulo (Hb 1, 1-2)

a querer induzir os hebreus

a que se apartem daqueles primeiros modos

e tratos com Deus da lei de Moisés,

e ponham os olhos somente em Cristo,

dizendo: O que antigamente Deus disse

pelos Profetas a nossos pais

de muitos modos e maneiras,

agora, por último, nestes dias,

nos falou pelo Filho tudo de uma vez.

No qual dá a entender o Apóstolo

que Deus ficou como mudo

e não tem mais que falar,

porque o que falou antes em partes

aos profetas já o falou no tudo,

dando-nos o Tudo, que é seu Filho.

Pelo que, o que agora quiser

perguntar a Deus,

ou querer alguma visão ou revelação,

não só faria uma insensatez,

mas faria agravo a Deus,

não pondo os olhos totalmente em Cristo,

sem querer outra coisa alguma ou novidade.

Porque lhe poderia responder Deus

desta maneira dizendo:

“Se te tenho já faladas

todas as coisas na minha Palavra,

que é meu Filho, e não tenho outra,

que te posso eu agora responder

ou revelar que seja mais que isso?

Põe os olhos só nele,

porque nele te tenho dito tudo e revelado,

e acharás nele ainda mais do que pedes e desejas.

Porque tu pedes

locuções e revelações em partes,

e se pões nele os olhos,

achá-lo-ás em tudo;

porque ele é toda a minha locução e resposta

e é toda a minha visão e toda a minha revelação.

O qual já vos falei,

respondi, manifestei e revelei,

dando-vo-lo por irmão,

companheiro e mestre,

preço e prémio.

Porque desde aquele dia

que baixei com o meu Espírito sobre ele

no monte Tabor, dizendo (Mt 17, 5):

Este é o meu amado Filho,

no qual pus todo o meu enlevo; escutai-o;

já levantei eu a mão de todas essas maneiras

de ensinamentos e respostas e dei-a a ele.

Ouvi-O a Ele,

porque já não tenho mais fé que revelar,

nem mais coisas que manifestar.

Que, se antes falava,

era prometendo a Cristo;

e se me perguntavam,

eram as perguntas encaminhadas

à petição e esperança de Cristo,

em que deviam achar todo bem,

como agora o dá a entender

toda a doutrina dos evangelistas e apóstolos.

Mas agora,

o que me perguntasse daquela maneira

e quisesse que eu lhe falasse ou lhe revelasse algo,

era de alguma maneira

pedir-me outra vez a Cristo,

e pedir-me mais fé,

e ser falto nela,

que já está dada em Cristo.

E assim, faria muito agravo ao meu amado Filho,

porque não só naquilo lhe faltaria na fé,

mas obrigava-o outra vez a encarnar

e passar pela vida e morte primeira.

Não acharás que pedir-me

nem que desejar de revelações

ou visões da minha parte.

Olha-O tu bem,

que aí acharás já feito e dito tudo isso,

e muito mais, n’Ele.

S 2, 22, 3-5

Eulogio Pacho, As mais belas páginas de S. João da Cruz, Edições Carmelo, Avessadas p.43.